Leonardo

Dormente em modéstia, sua estranha anestesia, vive azul deitado. De Itaguaçu, se pode ver nitidamente. Nitidamente. O gigante original. Deitado em dorso, enorme, espera. Faz aniversários de véspera. E desde sempre, sem saber, se repete. Em espiral espera e sempre.

Uma vez por semana, embalada em roupas dominicais, via passar parado este gigante. Do ônibus, sobre a segunda ponte, percorria desde uns pés diluídos até a cabeça pensativa. Montanha dormente e adormecida. Em que pensava o gigante, eu me perdia. Sempre sucedia.

Na volta, cabeça aos pés, roupa intacta, contrariada, somente dúvida devolvia. O ônibus suave sobre a ponte sem trânsito. O outono, o sol curto e débil, o frio, a panorâmica das rodas, meus olhos sobre o corpo azul intermediário. Ele rígido. Eu calada. Crente.

Os dias úteis eram quase, mas não eram. O ônibus e eu, mantidos e válidos, mas não o fenômeno, nem sua sombra. Limitada extensão do útil. Pois que era um gigante de domingos, de um mínimo de silêncio e oposto a engarrafamentos. E ainda que, por poesia, sempre ligasse Ilha e Brasil, a ponte também era outra em ocasião de domingo. Minha vista. Despoluída, sem ruídos.

Neste tempo, descobri: a fé que jamais minha. E sobre seu azul contorno escuro e rígido, deitado entre estupores primários de mar e céu, divisor de caminhos, depositei uma história inteira. Meu porvir.

Busquei o futuro em outros sítios. Era o tempo de cumprir os passos de João. Sabendo que as forças internas de todo um país seguiriam nutrindo, tais quais veias, rios, lençóis azuis em simulacro, esta montanha de ternura cujo pulso sinto cada vez mais perto e certo.

Meu gigante de Itaguaçu há de se levantar em breve.

A imagem de um anjo pândego a pousar, inadvertido, a verdadeira ponta de seu nariz. A montanha que espirra enevoada. Vaivém do anjo a provocar. E eis que, a cada espirro, meu sonolento gigante ergue-se mais. A cada cócega do anjo-inseto, desgruda da terra um pouco mais.

Vigilante, fará entender que momento passado não é mais que momento. E quando enfim vertical, totalmente desperta, ilhéus aterrorizados, notícia espalhada, a ex-montanha cismar de bater pé, saberei que o Principal da vida estará à porta, pedindo colo. Nosso encontro. Meu gigante. Leonardo. Dei-lhe um nome grande. Que venha a passos largos.

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